terça-feira, 23 de junho de 2015

Palestra de Lama Padma Samten e Roberto Crema - Dissolvendo as bolhas da normose (transcrição)


Palestra de Lama Padma Samten e Roberto Crema - Dissolvendo as bolhas da normose




Transcrição: http://www.youtube.com/watch?v=Gym5bn4X6Mk
Local: SINDUSCON-RS, Porto Alegre, 25 de março de 2015
Transcrição: Fabio Rocha, junho de 2015
Palavras chaves: normose, bolhas, realidade

Lama: (...) mais tempo no Sul e vir mais vezes a Porto Alegre também. Então, eu tô muito feliz por essa oportunidade de encontrar os amigos, né? A gente tava conversando lá e eu não queria nem começar a palestra e tive que ir a um e a outro, assim, uma felicidade.

E eu encontrei o (Roberto) Crema em Brasília quando o Gyalwang Drukpa teve aqui, né? Então, aquilo foi um bom encontro. Sua Santidade Gyalwang Drukpa, que é o regente da linhagem Drukpa Kagyu, ele tava visitando o Brasil pela primeira vez, né? Então, ele foi a Brasília e eles convidaram – a coordenação convidou, né? – e fomos nós dois, né? A gente recepcionou o Gyalwang Drukpa.

Normose

Aí sempre surge esse tema da normose, né? Eu sempre lembro dessa expressão do Pierre Weil, né? Esse tema, ele é super importante. E talvez o obstáculo maior que a gente tenha no caminho espiritual seja justamente a normose, né? Isso vem por uma sensação de que o mundo é o que parece que ele é.

Avidya – dificuldade de traduzir

Em sânscrito tem uma palavra pra isso que é avidya. Avidya significa ignorância. Mas essa palavra – “ignorância” – ela não é muito adequada, sabe? Eu vi alguns tradutores explicando a quase impossibilidade de traduzir uma cultura dentro das expressões de outra cultura. Porque, por exemplo, cada palavra que nós usamos, ela tá contextualizada dentro de uma cultura, então ela tem um significado inseparável das outras palavras e dos outros conceitos daquela cultura. Quando as culturas tem áreas que não se tocam direito, as palavras, por exemplo - a gente tirar uma palavra de uma cultura e colocar em outra palavra de outra cultura -  ela não vai dar aquele significado. Porque aquela palavra, ela tá imersa num contexto. Quando eu substituo por uma outra palavra, ela tá imersa num outro contexto. Então, parece impossível a tradução, né? Assim, por exemplo, quando a gente usa a palavra ignorância pra traduzir avidya, parece que tá faltando um conhecimento. Essa é a sensação – a ignorância seria isso, né? Aqui é muito diferente, né?

Xadrez

Então seria mais parecido, por exemplo, com a pessoa estar jogando um jogo de xadrez, né? Então, quando ela tá jogando aquilo, tem um momento em que ela entra numa bolha correspondente ao jogo, né? Aí ela esquece de comer, ela de repente fica com raiva do outro, ou fica incomodada com aquilo... A pessoa fica tomada por aquele contexto. Avidya significa que  surge uma bolha e ela não consegue atravessar a borda da bolha. Essa bolha é espelhada. Ou seja, quando a gente olha a superfície da bolha, a gente vê as imagens de dentro. O nosso olhar não consegue atravessar. Mas, como aquilo é espelhado, parece que nosso olhar vai até o infinito. Então, as bolhas são assim, né?

Cinema

Por exemplo, nós vamos ao cinema e estamos vendo um filme. Quando a gente vê um filme, a gente entra na história. A gente começa a repercutir. Se a gente pensar que aquilo é luz e tela, a gente se torna um chato, né? Tem a namorada chorando, né? Vê o Titanic afundando... Eu confesso pra vocês que eu não tenho ido muito ao cinema não, vocês me desculpem. (risos) Aí, o Titanic afundando, ou o “Tubarão 2”, alguma coisa assim, né? (risos) Ou Charles Bronson, ou alguma coisa... Não tenho ido ao cinema. Mas aí, a gente tá no meio daquilo, né? A pessoa chorando. E a gente: “Mas, olha, pense: isso aqui é só tela e luz. Ali não tem nada, pessoa.” E a pessoa: “Bá, você é horrível, insensível. Você é um monstro. Tá vendo o Brad Pitt morrendo ali e você não faz nada?” Então a gente tem a sensação de que aquilo... Se a gente raciocinar, a gente diz “Bom, isso não é real.” Mas a gente olha e as emoções se movem, as energias se movem, aquilo tudo vai assim, né? Assim, são bolhas. Então, as bolhas, elas movem todo o sentido de realidade. Aquilo é super bonito, né?

Fotografia do ex

Se vocês olharem... Talvez vocês não tenham tido essa experiência, né? Mas alguém que tenha alguma ex-esposa ou ex-marido e olha a fotografia do ex. A gente vê que a fotografia mudou, assim, né? (risos) O conteúdo da foto é diferente. Mas a foto é totalmente inocente. Não tem nada ali. (Mas eu tenho que olhar o relógio aqui. É até oito e meia, né? A gente vai trocando, assim. Oito e meia, né? É, né? Então tá, a gente vai de oito e meia até as nove e aí às nove e meia a gente conversa um pouco, todo mundo, né?)

Ciência

Então, tem isso, né? A gente olha o objeto e o objeto muda. Naturalmente, quem estudou Física (né, Rogério?), aí a pessoa teve essa grande aflição da passagem da Física Clássica pra Física Moderna, né? Pra Física Quântica... Aí, a pessoa, ela não entende como que aqueles experimentos todos feitos em laboratório, aquilo tudo aparentemente comprovado, as leis de Maxwell, aquilo que judiou dos alunos por muito tempo. Os alunos até reprovados, eles podiam entrar com uma ação: “Olha, essas leis, elas foram todas revogadas. Então, não faz sentido ser reprovado por uma coisa que depois foi revogada. Se viu que não era bem assim.” Mas, então eu vejo assim: a ciência é um ambiente maravilhoso pra descrever avidya, né? A gente começa a estudar a história da ciência e vai vendo, assim, as crenças, né? Então, visões de mundo – a pessoa olha pra abóbada celeste e vê as mais variadas coisas. Essas coisas dizem respeito ao conteúdo que elas têm dentro. E a pessoa vê aquilo como se fosse externo, claramente. Ela tem emoções, ela tem propósitos, ela tem uma coerência. Não só ela tem isso como aquela coerência funciona.

É tipo um jogo de xadrez – a gente vai jogar o jogo e aquilo tem uma coerência, tem uma forma de raciocinar, tem uma visão estratégica, tem uma previsão matemática. A gente pode estudar e ver como se mover de modo estratégico por dentro do jogo e vai ganhando uma posição melhor do que o outro companheiro, o outro jogador... No fim a gente começa a ganhar o jogo porque a gente pode se colocar. Então se aquilo não tem uma realidade externa, como seria isso, né? Mas a realidade externa do jogo, ela é totalmente construída, ela é totalmente... Ela é uma bolha, uma realidade construída, assim.

Então, esse é um ponto super interessante. A gente vai estudando a ciência, então a gente vê coisas do tipo assim: houve um tempo em que as pessoas não conheciam bactérias e vírus. Não conheciam. E elas não conheciam, portanto, assepsia. Então nós vamos encontrar pessoas de terno e gravata fazendo cirurgia. Cortando outro, ele tá fumando. Soprando um pouco pra energizar alguma coisa, assim. Então, a pessoa sem assepsia, né? Super tocante, assim. Não sei como é que as pessoas não morriam direto, né? E, quando surgiu essa visão das bactérias e dos vírus e surgiram as vacinas, as pessoas se posicionaram contra. Elas fizeram um movimento público. Aqui no Brasil teve isso, né? As pessoas se posicionando, imaginando que o Estado tava invadindo o próprio corpo. Colocando... Inoculando com vacinas. A vacina da febre amarela – houve um problema, uma emoção com isso.

Diferentes culturas

Então são visões que a gente desenvolve e essas visões vão se tornando visões hegemônicas e parece que o mundo inteiro funciona daquele jeito. Eu acho interessante quando nós temos a oportunidade de comparar diferentes culturas, né? Nós ainda temos duas centenas de línguas nativas aqui no Brasil, vivas. Nós temos muitas diferentes culturas aqui dentro.

E é inacreditável, por exemplo, que essas pessoas possam viver sem computador, assim, sem iPad, né? Sem celular, né? Sem geladeira, sem fralda descartável, sem absorvente íntimo. Eu não sei como seria isso. Na verdade, eu também não uso, mas... (risos) E assim não tem automóveis, não tem aviões, não tem medicina da forma que a gente conhece, não tem indústria química, não tem facas, não tem garfos. É uma coisa inacreditável, né? Tá certo que tem algumas vantagens: não tem escola, por exemplo, né? Aí tem coisas super interessantes, por exemplo: não tem loucura. Eu acho que já é um problema. Não é muito normal, assim. Também não tem cadeia. Como que não tem cadeia, num lugar onde não tem contravenção? Também não tem Constituição, não tem Código Penal, não tem advogados – o que seria uma vantagem... (risos) Mais ou menos, assim, né? Não tem polícia. É super incrível isso. Eles não são civilizados. E olha o corpo deles – super forte. Como é que eles conseguem manter a saúde num ambiente assim, né? Eles não têm tecido, malha, né? É incrível como é que eles conseguem viver. Então, eles têm um outro tipo de normalidade. Eles têm uma outra forma de olhar as coisas, né? Então, isso é super importante a gente entender. Nesses contrastes, a gente pode – no mínimo – dizer: eles têm um tipo de artificialidade e nós temos outro tipo de artificialidade. Mas são artificialidades, são bolhas. Se a própria pessoa vive daquele modo, ela não pensa que tenha algum problema, que exista outra forma de viver. Por exemplo, pra nós, nós raciocinamos longamente dentro do processo econômico. O processo econômico é crucial pra nós. Faz parte da nossa normalidade, né? Naturalmente, fazer vestibular - porque eles não têm vestibular - fazer vestibular e conseguir um emprego – as pessoas não têm empregos dentro dessas culturas... E não tem desemprego também, o que é uma vantagem, né? Desemprego zero, né? (risos) É muito interessante, assim.

Outras formas de olhar o funcionamento, assim. Mas quando nós tamos imersos na nossa cultura como ela tá hoje, a gente pode até ouvir, assim, como as pessoas ligadas ao movimento ecológico, elas vão olhando e nós tamos quase sem alternativas, né? Nós temos manchas de poluição enormes, nós temos regiões dos mares tomadas por plástico, tem uma espécie de redemoinho no Pacífico com uma quantidade enorme de plástico, muitos animais marinhos morrendo por ingestão de plástico. Então, tem uma contaminação. A contaminação nuclear de Fukushima chegou na costa americana. A contaminação nuclear de Fukushima não vai parar – aqueles reatores, eles fundiram. Aquela fusão não tem como controlar. Não tem como resfriar aquilo. Virou uma bolota radioativa que segue produzindo fissão e uma economia de nêutrons de tal forma que a fissão de uma estimula outra de tal forma que aquilo vai continuar por um tempo não previsível, assim. Eles vão seguir resfriando por fora e eles não tem como guardar aquela água, que – quando eles resfriam – toma contato com o material radioativo, ela se torna radioativa. Eles não tem como guardar mais do que um tempo. Então, eles estocam aquilo pra baixar a radioatividade e largam no oceano. Agora, tiveram essa ideia de congelar a água. Mas não tem como fazer aquilo mais do que um tanto, ela vai fluir pro oceano... Nós tamos contaminando o nosso planeta. Mas a gente considera assim: “É isso mesmo. Não tem o que fazer. Essa é a nossa vida.” E agora os japoneses tão se preparando pra reativar as centrais nucleares. Ou seja, a normalidade, ela retorna, né? Aquilo que parece uma normalidade, né?

Então, a gente olha as culturas nativas, eles viveram 15 mil anos de um modo sustentável. Nós vamos encontrar, na Amazônia, por exemplo, vamos encontrar manchas de solo preto. Era justamente as regiões onde eles viviam, onde esses povos viviam, a densidade populacional. Qual é o lixo que eles deixam? Eles não deixam lixo nenhum. Eles deixam matéria orgânica decomposta na forma de solo super fértil. As casas eram recicláveis, era tudo reciclável. Não tinha nada que não fosse reciclável. Não tem lixo tóxico, não tem nada. Agora, vocês imaginam os nossos lixões, assim, com pilhas, com metais pesados de todos os tipos. Pra nossa sociedade parece normal – “É assim mesmo. É isso.” Então, quando a gente pensa que isso é normal, isso já seria normose, né? Quando a gente só vê essas alternativas.

Economia

O Dalai Lama, ele gosta de lembrar essa questão econômica, também, né? E a gente precisa colocar isso de uma forma simples. Ele coloca isso de uma forma simples, mas tocante, assim. Ele diz, por exemplo: Cada um de nós aqui foi cuidado a fundo perdido pelo pai e pela mãe. Ou por alguém que cumpriu essa função, de pai e mãe. As relações mais importantes que nós estabelecemos são todas a fundo perdido. Mesmo os pais trabalhando pra sustentar os filhos, eles têm uma atividade econômica, mas a atividade econômica não é o fim. O fim é poder cuidar de alguém. Se nós não cuidamos das pessoas, nós naturalmente entristecemos e nós não ficamos bem. Então, a compaixão, amor, o interesse um pelo outro é que sustenta o mundo, verdadeiramente. Não é a atividade econômica. A gente vê vários eventos-limite, né? Onde vêm as guerras, as grandes complicações. Nesse momento, a atividade econômica evapora. Explode tudo. O que que vai acontecer? As pessoas se juntam e elas se ajudam. Trabalham em rede de uma forma totalmente voluntária. Nesse tempo que nós tamos vivendo, nós vamos encontrar também quase um limite extraordinário. Aí vem a crise econômica de 2008/2009 e nós vamos encontrar as pessoas – os cidadãos – através do Estado, apoiando as grandes empresas. As grandes empresas vão quebrar, aí vem dinheiro público e é investido nas empresas pras empresas sobreviverem. Se nós fôssemos usar o critério do próprio sistema econômico, a gente não ajudava ninguém. Não tem porque nós usarmos compaixão e usarmos um sentido que ultrapassa a regra do jogo. A regra do jogo é assim: quando a empresa vai mal, quebra. Se você não pode pagar, você vai pro SPC. Não tem assim uma grande solidariedade, em que você quebrou, então alguém, vem o Estado pra salvar você. O Estado não salva você. Nós nos encontramos agora – nós tamos vivendo esse tempo – em que a gente não sabe se o Estado, ele tá a serviço das organizações econômicas ou se o Estado tá a serviço das pessoas. Essa é a grande tensão política no momento. Nós não temos mais, propriamente, uma tensão entre direita e esquerda. A esquerda virou uma coisa tipo movimento sindical, reivindicando vantagens, e a direita, essencialmente, o processo do capital, né? Mas, quando nós encontramos as situações que nós tamos vivendo hoje, a tensão é diferente. É assim: o Estado protege o cidadão ou o Estado protege as grandes organizações? Então, aparentemente, tem uma visão que é assim: o Estado protege as grandes organizações, as grandes organizações protegem o cidadão. Ou outra visão que é assim: nós protegemos o cidadão frente a exploração do capital, exploração das grandes organizações e dos bancos, que tratam de fazer aquilo que é mais rentável pra eles. Então, aparentemente, nós tamos adotando uma posição majoritária na qual os Estados protegem as grandes organizações. Nós tamos adotando isso. Mas nas ruas vocês tão vendo as pessoas se manifestando constantemente. Então, quando nós encontramos, por exemplo, o ministro da Espanha dizendo pros jovens espanhóis emigrarem, porque eles não tem como encontrar emprego dentro do país, a gente entende que as organizações econômicas não estão a serviço da população. Não estão a serviço nem mesmo do país. Porque se nós mandarmos os jovens emigrar, nós chegamos a situação de que uma economia de primeiro mundo, uma economia de ponta, ela tem um momento em que ela não consegue mais nem mesmo acolher os jovens das gerações seguintes. Eles não são mais prioritários. Então isso significa nós estarmos ultrapassando completamente os critérios de bom senso, ainda que a gente vá chamar isso de normalidade. Ainda que se adote como uma política sábia, respeitável por grandes organizações. É isso. Isso vai dar aonde? Na medida em que a água se reduz, os materiais todos vão ficando mais caros, progressivamente, o consumo se expande, o lixo segue, nós vamos seguir chamando isso de alguma coisa normal. Isso não é alguma coisa normal, pessoal. Mas a normalidade, na normose, se diz... Tem esse exemplo do sapo, né? Que eu não sei se é verdade ou não. Bota o sapo dentro da água e vai aquecendo devagarzinho. O sapo fica confortável em qualquer temperatura. Até que ele morre. Ou ovo, assim. Bota o ovo e vai aquecendo devagarzinho, daqui a pouco o ovo endurece. O sapo também. A normose nos leva a isso. "Tá tudo bem, vamos relaxando, vamos indo..." Aí nós passamos os limites todos.

Nossa visão de mundo

Esse é um ponto interessante, assim, as nossas vidas também. O nosso aspecto individual. A gente não precisa pensar que socialmente esse é o problema. Nós, individualmente... Todo mundo vê o sol se levantar a leste e se por a oeste. Eu não quero trazer nenhuma controvérsia, algum problema, assim, pessoal, pra vocês, né? Mas o sol não se levanta, pessoal. Todo mundo vê. A lua também não se levanta, mas a gente tá vendo. Isso é avidya. A gente olha e vê. Além do mais, se vocês tiverem o cuidado: vocês botam um lápis em pé assim na escrivaninha e deixam o sol bater e vejam se a sombra não se mexe. Porque que a sombra se mexe? Não é a mesa que tá se mexendo. Ou nós vamos pensar que é assim? Claro que não. É o sol que tá se mexendo. Vocês entenderam? É tão claro. A gente vê tão claramente assim. Isso é normose. Se fosse fácil ultrapassar normose a gente dava um pulo e tava resolvido. Mas não é. Dentro da normose, a gente pode até provar para o outro: Todos os dias eu dou um tracinho aqui e olho pro relógio aquela hora. Isso aqui se chama relógio de sol. Inventei o relógio de sol, pessoal. Aí, eu descobri que de acordo com a época do ano a sombra é mais longa ou a sombra é mais curta. Claro, porque o sol tá mais pra lá ou mais pra cá. O sol fica girando.

Agora, por exemplo, se vocês vão construir uma casa, a gente diz: "Não, agora eu entendo as coisas, eu tenho uma visão ampla, a Terra é redonda, eu quando fizer uma viga, vou fazer uma viga um pouco inclinada, de acordo com a curvatura da Terra. Imagina, se eu for fazer aquilo reto vai dar problema. Tem que fazer aquilo um pouco curvo." Mas não precisa, né? Aí nós começamos a entender como é que nós podemos usar visões parciais sem perder a visão ampla. Um ponto super importante. Usando visões parciais, nós usamos a terra plana. Pra medir a área, melhor medir a área, se eu passo o metro, se descobre que é tudo plano. Então, terra plana funciona. Então, esse é um ponto interessante.

A gente pode usar muitas diferentes visões. A gente só não deveria se enganar. A gente sabe o que tá fazendo. Tá certo que eu tô vendo o sol fazer isso, mas não é assim. Mas funciona assim também. Aí eu vejo aquilo e aquilo é útil. Tudo bem, mas eu não me engano, entende? Eu posso usar, mas eu não me engano. Isso significa lucidez. Eu entro na bolha, vejo aquilo, me comporto como todos os loucos correspondentes dentro da bolha, concordo com todo mundo, mas ó... Tô em uma outra visão. Eu vejo que aquilo é uma visão particular, né? Então, esse é um treinamento também.

No Budismo se diz que o Buda tinha isso que era a dupla realidade: ele via dentro de um aspecto amplo e via dentro de um aspecto curto, né? Mas a normose é super tocante, né? Quando a gente estuda a roda da vida, né? Os 6 reinos, os 3 animais...

Os infernos

Quem tá, por exemplo, no reino dos infernos - os infernos correspondem a um contexto cristão, judaico-cristão ou também islâmico - lá que tem os infernos. No Budismo, os infernos, eles têm uma outra visão, né? Ainda que a gente usa a mesma palavra, como eu expliquei pra vocês. A gente vai usar o quê, né? Vou usar as palavras desta cultura né?

Mas, por exemplo, os infernos budistas são melhores. Se vocês forem julgados e forem pro inferno, você diz - Um momento, a gente pode optar pelo inferno budista? Aí tem o departamento. - Eu sou budista e eu preferia ir pro inferno budista, é possível? É que do inferno budista tem como escapar, pessoal. Tem essa diferença super importante.

Tem algumas variantes que são problemáticas também. Por exemplo, a gente pode estar vivo aqui e no inferno. Já os cristãos, de modo geral, eles só vão pro inferno depois de julgados, né? Tem umas variações, também é justo, né? Mas, então se diz - os infernos são descritos - uma coisa parecida com aquelas gravuras dos naturalistas - coisas do Rio Grande do Sul, do Brasil, de diferentes lugares - eu vejo aquelas pinturas das charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul... Eu lembro: aquilo é o inferno. Pega aquele ser, corta, tira a pele, expõe os testículos, abre ele, põe pra secar no sol, ... O ser não tem solução. Uma coisa mais ou menos assim. São os infernos. Mas quem tá nos infernos, se a gente olhar os aspectos grosseiros, seria isso. No aspecto sutil, a pessoa olha em volta e só vê inimigos. Vocês pode imaginar o gado, num rodeio, as pessoas correndo atrás pra matar eles... Olha em volta e só vê inimigos, né?

Numa guerra também, a gente olha em volta e vê os inimigos, e tem medo daquilo. E quando nós temos medo e agressão, aquilo é a base da nossa inteligência, da nossa emoção, da nossa energia, quando a gente vê isso, essa normalidade dos infernos, ela nos faz, por exemplo, lançar duas bombas nucleares sobre o Japão. Nos faz bombardear regiões do Japão e matar cem mil pessoas só com bombas incendiárias... Em Tóquio. Nos faz bombardear Colônia na Alemanha, dentro de uma experiência de criar uma única chama na cidade inteira. A chama era tão forte que cozinhou as pessoas dentro dos abrigos anti-aéreos. Então, aquilo pertence à normalidade, né? Qualquer instituto militar de engenharia estuda não só a economia de nêutrons numa bomba mas também a economia monetária de quantas pessoas mortas por dólar investido numa bomba, né? Eles calculam: é melhor lançar mais alto, mais baixo, para aquilo funcionar melhor, né? E as pessoas depois vão pra casa, escutam música clássica, cuidam das crianças, levam elas pro jardim da infância, comem comida integral, comem saladas pra não pesar demais no corpo e seguem estudando isso. Isso é normose, pessoal. É como, por exemplo, o governo americano - agora diminuiu um pouco - mas o Obama se reunia toda semana pra ver onde é que eles iam utilizar os drones para matar gente aqui e ali. Especialmente no Afeganistão. Isso pertence à normalidade da guerra. À normalidade dos infernos. A normose dos infernos não significa que as pessoas não sejam pessoas inteligentes. Elas tão dentro de uma forma de raciocinar assim, né?

Escolas, formação acadêmica e profissional

Então nós tamos vivendo isso. Só que nós tamos vivendo num tempo em que a normose desse tempo é alguma coisa que talvez nos jogue numa grande dificuldade, se é que essa grande dificuldade já não se instalou, né? Então, é super importante a gente conseguir quebrar isso. Só que nós tamos vivendo hoje em muitas diferentes culturas. Essas diferentes culturas estão revelando uma incapacidade - elas dialogam entre si e produzem tensão. E aí quando nós tentamos entender umas e outras, a gente pode dizer que uma não entende a outra direito. A gente pode dizer, por exemplo, o pai não entender o filho, não entender a esposa... A gente começa a habitar bolhas específicas, né?

Dentro disso, a escola também tá se sentindo perdida, né? Porque a escola vem pra educar as pessoas para ocupar espaços dentro da normose. A normose tá em crise. Então, a gente fica em dúvida, assim. Às vezes, as pessoas até vem pra mim: "Lama, eu estudo psicologia ou estudo o budismo..." E aí eu também não sei nem o que dizer, né? E eu digo: "Olha, se fosse meu filho... Estude o budismo. Mas tudo bem, eu não sei como você vai fazer isso." Eu tenho vários alunos que eram psicólogos e foram estudando o Darma do Buda e foram achando que poderiam ajudar melhor de um outro modo. Eles depois entraram em crise. E tem alunos também médicos que se sentiram... Como se diz, assim - isso eu vi de um filme infantil, né? Filme do Senhor Incrível. Achei aquele argumento maravilhoso, né? - Ele dizendo: "Eu me sinto uma horista, uma faxineira." Isso eu ouvi também de centro espírita. "Me sinto uma faxineira." Ele era uma espécie de super-herói, né? Então ele salva aqui, salva ali, salva ali... Daqui a pouco a pessoa se joga de novo e ele salva, salva... Assim, então me sinto uma faxineira. Tô sempre arrumando aquilo, mas o mundo inteiro tá sempre com problemas. Então, o mundo - dentro de sua normalidade - vai produzindo obstáculos. Eu já vi médicos dizendo isso, né? Porque a pessoa tá agindo contra sua própria saúde. Aí, ele vai lá e conserta, arruma, ajeita e dá um remédio... Aí, passa 6 meses, a pessoa tá de novo. Ela não altera o hábito dela. Ela tá atuando contra a própria saúde. Aí ele começa a desanimar. Os psicólogos também. Eles podem ter a sensação de que a pessoa tá num lugar que mói carne. Numa empresa. E ele tá ali, parecido com um médico de centro de tortura. Quando o torturado tá muito mal, ele conserta ele, arruma e manda ele de novo pras sessões de tortura. Todo centro de tortura tem médico. Então, as pessoas dentro do mundo começam a adoecer, elas passam mal, aí tem que ter alguém que conserta. Mas a pessoa olha e acha que tá perdendo tempo. Sente que tá perdendo tempo naquilo, né? Eu ouvi isso também de um médium espírita. Ele dizia: "A pessoa chega lá eu descarrego ela toda, limpo, deixo ela zerada. Ela vai embora. Daqui a uma semana, ela tá lá de volta. Toda carregada de novo. Eu vou lá, zero ela toda. E quando ela tá ótima, ela sai e apronta por todo lado. E aí quem é que tem que fazer o serviço sujo? Eu. Então eu sou uma faxineira."

Então, esse é o ponto da normose, né? É super importante a gente sacudir a normose. Sermos fatores lúcidos. Incluirmos a nossa própria decisão de ultrapassar todas essas dificuldades e poder olhar isso.

Unipaz

Então, eu fiz essa pequena introdução pra gente escutar agora o Crema aqui, que representa também o nosso mestre, fundador da Unipaz, que a gente tem esse carinho todo, o Pierre Weil. Particularmente, eu me senti muito beneficiado - hoje eu tava dizendo pro Crema - é como também o Chagdud Rinpoche, o meu mestre, ele veio pro Brasil a convite da Unipaz. Ele veio a um congresso, que eu acho que foi em Brasília. Um congresso muito importante no final da década de 80. A partir disso, ele começou a vir ao Brasil. Eu não conheci ele no início, mas eu vim a conhecê-lo em 93 quando ele veio a Porto Alegre. E se radicou aqui em 94. Então, eu fico muito comovido, muito feliz.

No meu início também, quando eu fui ordenado Lama, e até um pouco antes disso, a Unipaz me convidou e eu comecei como facilitador da Unipaz. Muitas diferentes cidades... E em várias dessas cidades as pessoas também se interessavam pelos ensinamentos budistas e aquilo prosperou, assim. Então, tenho essa gratidão, amizade, assim. Então, agradeço, é uma felicidade ver o Crema aqui conosco.

(Roberto Crema fala dos 34 minutos até 1:13 e abre-se o espaço para perguntas.)

- PERGUNTA: Esse passo de transgredir a normose, como é que é assim? Como seriam os primeiros passos? O que vocês sugerem pra quem tá começando a entrar em contato com tudo isso agora? De onde vem essa coragem pra mudar?

- LAMA: Eu não sei se o termo é "coragem". Talvez não seja, sabe? Porque quando a gente vê as coisas de uma forma mais nítida, a gente se move naturalmente, então não tem uma sensação de que há algum obstáculo nisso. Quando a pessoa olha de uma forma mais nítida, aquilo flui de modo natural. Eu não vejo que a espiritualidade seja alguma coisa de um herói. Que a gente tenha que, então, fazer um sacrifício. Quando a gente olha as imagens medievais, parece que os santos medievais faziam grandes sacrifícios. Na visão budista, isso não é assim. Eu acredito que na espiritualidade isso não é verdadeiramente assim. Quando a pessoa olha as coisas, ela vê oportunidades, ela descortina uma visão maior e ela usa outros elementos que as pessoas não tavam vendo. Então, na perspectiva budista, é isso. A normose é uma limitação da visão. Se a pessoa consegue um olhar mais amplo, melhor.

- PERGUNTA: Como vocês vêem essa questão, que é sobre espiritualidade, como que isso poderia entrar um pouco mais pros nossos jovens e crianças? Entrar nessa parte educacional. Como que isso seria inflitrado, esses ensinamentos sobre a normose, sobre a transdisciplinaridade? Essa parte.

- LAMA: Essa questão não é muito fácil porque a educação preenche uma expectativa social. A educação começa com a comunidade. A comunidade tem uma expectativa em relação a seus jovens. Quando nós temos uma expectativa mais elevada, a escola melhora. Quando nós temos uma expectativa normótica, a escola é normótica, né? É muito difícil a pessoa introduzir um elemento na escola que seja dissonante da visão da própria comunidade. Porque os pais vão reclamar, todo mundo vai reclamar. Mas vamos supor que houvesse uma comunidade que tem uma visão mais elevada. Como é que é possível introduzir esses fatores? Não acho isso um grande problema, sabe? Acho que crianças pequenas, elas podem entender vários aspectos interessantes. Por exemplo, elas podem entender que a gente tá cansado mas a gente pode mudar a mente e ultrapassar o cansaço. A gente pode estar se sentindo mal mas daqui a pouco aquilo muda. A realidade inclui os aspectos internos. Então eu vejo assim - um elemento muito importante na espiritualidade é nós introduzirmos o mundo interno como inseparável da aparência com que estamos lidando. Se a gente tá trabalhando com isso, a gente superou o aspecto separativo da realidade. Quem ultrapassa o aspecto separativo tem uma grande vantagem. Por exemplo, a pessoa pode utilizar as cinco visões que são básicas do Budismo, né? Mas elas são visões de bom senso, assim, se a gente apresentar aquilo fora do Budismo, todo mundo entende também. Por exemplo, nossa capacidade de entender o outro no contexto do outro. Isso é uma coisa necessária pra qualquer chefia, né? Se a pessoa pretende ter alguma posição em algum lugar, a pessoa tem que ser capaz de entender os outros com quem ela tá lidando no mundo do outro. Ela não pretender esperar que o outro vá entender o chefe no mundo do chefe. Muito mais difícil. Se as relações são horizontais, as pessoas que conseguirem entender os outros no mundo deles vai ter uma predominância. Porque ela vai conseguir dialogar, ela vai ter uma linguagem com cada um. Quando nós não temos linguagem com as pessoas é porque não estamos conseguindo entender o outro no mundo do outro. É interessante. por exemplo, nós conseguimos entender os animais.

(parei em 1:22)


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